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quinta-feira, 14 de março de 2013

O menino do pijama listrado- Capítulo 13 - A garrafa de vinho

Com o passar das semanas, Bruno começou a entender que não voltaria a Berlim no futuro previsível e que era melhor desistir da idéia de escorregar pelos corrimãos da sua casa confortável ou de ver Karl ou Daniel ou Martin tão cedo.
Todavia, a cada dia ele se acostumava mais e mais com a vida em Haja-Vista e parou de se sentir tão infeliz a respeito de sua nova realidade. Afinal, não era mais como se ele não tivesse com quem conversar. Todas as tardes, terminadas as aulas, Bruno caminhava o longo percurso acompanhando a cerca e se sentava para conversar com o novo amigo Shmuel até a hora de voltar para casa, e aquilo começou a valer por todo o tempo que ele passara sentindo saudades de Berlim.
Certa tarde, enquanto enchia os bolsos com uma porção de pão e queijo retirados da geladeira, Maria entrou e parou ao ver o que ele estava fazendo.
“Olá”, disse Bruno, tentando parecer tão casual quanto possível. “Você me deu um susto. Não a escutei chegando.”
“Não está comendo outra vez, está?”, perguntou Maria, sorrindo. “Já almoçou, não? E ainda tem fome?”
“Um pouco”, disse Bruno. “Vou sair para caminhar e pensei que poderia ter fome antes de voltar.”
Maria deu de ombros e foi até o fogão, onde pôs uma panela de água para ferver. Dispostas na mesa ao lado, havia uma pilha de batatas e cenouras, prontas para serem descascadas quando Pavel chegasse mais tarde. Bruno estava prestes a sair quando a comida atraiu sua atenção e lhe veio à mente uma pergunta que havia algum tempo o incomodava. Ele não pensara a quem perguntar antes, mas aquele parecia ser o momento perfeito e Maria, a pessoa perfeita a quem fazê-la.
“Maria”, disse ele, “posso lhe fazer uma pergunta?”
A governanta deu meia-volta e o olhou, surpresa. “É claro, senhor Bruno”, disse ela.
“E se eu lhe fizer a pergunta, promete não contar a ninguém o que vou perguntar?”
Ela estreitou os olhos, desconfiada, mas acenou afirmativamente. “Está bem”, disse ela. “O que você quer saber?”
“É sobre o Pavel”, disse Bruno. “Você o conhece, não é? O homem que vem descascar os legumes e depois nos serve à mesa.”
“Ah, sim”, disse Maria, sorrindo. Ela parecia aliviada pelo fato de a pergunta não ser sobre nada mais sério. “Eu conheço Pavel. Já conversamos em inúmeras ocasiões. Por que pergunta sobre ele?”
“Bem”, disse Bruno, escolhendo cuidadosamente as palavras para não dizer algo que não deveria, “lembra-se de que pouco tempo depois de virmos para cá eu fiz um balanço no carvalho e caí e machuquei o joelho?”
“Sim”, disse Maria. “Não está doendo de novo, está?”
“Não, não é isso”, disse Bruno. “Mas, quando eu me machuquei, Pavel era o único adulto por perto e ele me trouxe para casa e limpou o corte e o lavou e passou nele o ungüento verde, que doeu, mas acho que ajudou a sarar, e depois fez um curativo sobre o ferimento.”
“É o que qualquer pessoa faria por alguém que se machucou”, disse Maria.
“Eu sei”, prosseguiu ele. “Só que naquela ocasião ele me disse que na verdade não era um servente.”
O rosto de Maria congelou-se e por um instante ela não disse nada. Em vez disso, olhou em outra direção e lambeu levemente os lábios antes de acenar com a cabeça. “Sei”, disse ela. “E o que ele disse que era?”
“Disse que era médico”, respondeu Bruno. “O que me pareceu muito estranho. Ele não é médico, é?”
“Não”, disse Maria, balançando a cabeça. “Não, ele não é médico. Ele é um servente.”
“Eu sabia”, disse Bruno, bastante satisfeito consigo mesmo. “Então por que ele mentiu para mim? Não faz sentido.”
“Pavel não é mais um médico, Bruno”, disse Maria, em voz baixa. “Mas ele foi. Em outra vida. Antes de vir para cá.”
Bruno franziu o cenho e se pôs a pensar a respeito daquilo. “Não entendo”, disse ele.
“Poucos de nós entendem”, disse Maria.
“Mas se ele era médico, por que não é mais?”
Maria suspirou e olhou para fora da janela para certificar-se de que não vinha ninguém e então acenou com a cabeça na direção das cadeiras, e ela e Bruno se sentaram.
“Se eu lhe contar o que Pavel me disse sobre a vida dele”, disse ela, “você não poderá contar a mais ninguém – entendido? Estaríamos todos muito encrencados.”
“Eu não contarei a ninguém”, disse Bruno, que adorava ouvir segredos e quase nunca os traía, a não ser quando era absolutamente necessário, é claro, e não houvesse nada que ele pudesse fazer para preservá-los.
“Está bem”, disse Maria. “Isto é tudo o que eu sei.”

Bruno chegou atrasado ao ponto da cerca onde ele encontrava com Shmuel todo dia, mas, como sempre, o novo amigo o estava esperando sentado no chão de pernas cruzadas.
“Desculpe o atraso”, disse ele, entregando ao menino um pouco de pão e queijo através da cerca – os pedaços que ele ainda não havia comido durante o caminho, quando de fato ficara com fome. “Estava conversando com a Maria.”
“Quem é Maria?”, perguntou Shmuel, sem erguer os olhos, enquanto metia a comida goela abaixo, faminto.
“É a nossa criada”, explicou Bruno. “Ela é muito legal, embora meu pai diga que ela é muito bem paga para tanto. Maria estava me contando sobre um sujeito chamado Pavel, que vem cortar os legumes para nós e nos serve à mesa. Acho que ele mora do seu lado da cerca.”
Shmuel ergueu os olhos por um momento e parou de comer. “Do meu lado?”, ele perguntou.
“Sim. Você o conhece? Ele é muito velho e usa um paletó branco quando está servindo o jantar. Provavelmente você já o viu.”
“Não”, disse Shmuel, balançando a cabeça. “Nunca o vi.”
“Tenho certeza que sim”, disse Bruno, irritado, como se Shmuel estivesse sendo deliberadamente difícil. “Ele não é tão alto quanto a maioria dos adultos, tem a postura pouco inclinada e seu cabelo é grisalho.”
“Acho que você ainda não entendeu quantas pessoas há aqui deste lado da cerca”, disse Shmuel. “Há milhares de nós.”
“Mas este de quem estou falando se chama Pavel”, insistiu Bruno. “Quando eu caí do balanço, ele limpou o ferimento para que não infeccionasse e fez um curativo na minha perna. Enfim, o motivo pelo qual estou lhe contando tudo isso é porque ele também é da Polônia. Como você.”
“A maioria de nós é da Polônia”, disse Shmuel. “Embora também haja gente de outros lugares, como a Checoslováquia e...”
“Sim, mas foi por isso que eu pensei que você pudesse conhecê-lo. Enfim, Pavel era um médico em sua cidade natal antes de vir para cá, mas agora ele não tem mais permissão para ser médico, e se meu pai soubesse que foi ele quem limpou meu joelho quando me machuquei, então haveria uma grande encrenca.”
“Em geral os soldados não gostam de ver as pessoas melhorando de saúde”, disse Shmuel, engolindo o último pedaço de pão. “Costuma ser o contrário.”
Bruno acenou com a cabeça, ainda que não soubesse exatamente o que Shmuel queria dizer, e dirigiu o olhar para o céu. Após alguns momentos ele olhou através da cerca e fez outra pergunta que estivera rondando sua mente.
“Você sabe o que quer ser quando crescer?”, perguntou ele.
“Sim”, disse Shmuel. “Quero trabalhar num zoológico.”
“Num zoológico?”, perguntou Bruno.
“Gosto de animais”, disse Shmuel em voz baixa.
“Eu serei um soldado”, disse Bruno numa voz determinada. “Como meu pai.”
“Eu não gostaria de ser soldado”, disse Shmuel.
“Não quero dizer um soldado como o tenente Kotler”, disse Bruno rapidamente. “Não como ele, que anda por aí, como se fosse o dono do lugar e ri com a sua irmã e fala baixinho com a sua mãe. Não acho que ele seja um bom soldado. Quero dizer um soldado como meu pai. Um dos soldados bons.”
“Não existem soldados bons”, disse Shmuel.
“É claro que existem”, disse Bruno.
“Quem?”
“Bem, meu pai, por exemplo”, disse Bruno. “É por isso que ele usa um uniforme tão imponente e é por isso que todos o chamam de comandante e fazem qualquer coisa que ele diz. O Fúria tem grandes planos para o meu pai justamente porque ele é um soldado tão bom.”
“Não existem soldados bons”, repetiu Shmuel.
“Exceto o meu pai”, repetiu Bruno, que esperava que Shmuel não dissesse aquilo outra vez, pois não queria ter que discutir com ele. Afinal, ele era seu único amigo em Haja-Vista. Mas o pai era o pai, e Bruno não achava certo uma pessoa falar algo ruim a respeito dele.
Os dois meninos ficaram bem quietos por alguns minutos, já que não queriam dizer algo de que pudessem se arrepender depois.
“Você não sabe como são as coisas aqui”, disse Shmuel afinal, em voz baixa, suas palavras mal chegando ao ouvidos de Bruno.
“Você não tem irmãs, tem?”, perguntou Bruno rapidamente, fingindo que não tinha escutado o que o outro dissera, pois assim não teria que responder.
“Não”, disse Shmuel, balançando a cabeça.
“Você tem sorte”, disse Bruno. “Gretel tem apenas doze anos e acha que sabe de tudo, mas na verdade ela é um Caso Perdido. Fica sentada olhando pela janela e, quando vê o tenente Kotler se aproximar, corre escada abaixo, direto até a entrada, e finge que esteve lá o tempo todo. Outro dia eu a flagrei fazendo isso e, quando ele chegou, ela deu um salto e disse: ‘Ora, tenente Kotler, não sabia que você estava aí’. E eu sei muito bem que ela estava esperando por ele.”
Bruno não olhou para Shmuel enquanto dizia aquilo, mas quando o fez percebeu que o amigo estava ainda mais pálido do que o habitual.
“Qual o problema?”, perguntou ele. “Você parece estar passando mal.”
“Não gosto de falar sobre ele”, disse Shmuel.
“Sobre quem?”, perguntou Bruno.
“O tenente Kotler. Ele me assusta.”
“Ele também me assusta um pouco”, admitiu Bruno. “É um valentão. E tem um cheiro engraçado. É por causa de toda aquela loção pós-barba que ele usa.” E então Shmuel começou a tremer e Bruno olhou ao redor, como se pudesse ver em vez de sentir se estava frio ou não. “Qual o problema?”, ele perguntou. “Não está tão frio assim, está? Você devia ter trazido um casaco, sabe. As noites estão mesmo ficando mais frias.”

Mais tarde naquela noite, Bruno ficou desapontado ao descobrir que o tenente Kotler ia se juntar a ele, à mãe, ao pai e à Gretel para o jantar. Pavel usava o paletó branco de sempre e os serviu enquanto comiam.
Bruno observou Pavel caminhar ao redor da mesa e descobriu que se sentia triste cada vez que olhava para ele. Perguntava-se se o paletó branco que ele usava como servente era o mesmo que usava antes, quando era médico. Ele trazia os pratos e os depositava na frente de cada um deles e, enquanto comiam a comida e conversavam, ele ficava um passo atrás contra a parede e mantinham o corpo absolutamente imóvel, sem olhar para frente nem para outro lugar. Era como se o corpo tivesse adormecido de pé e com os olhos abertos.
Sempre que alguém precisava de alguma coisa, Pavel trazia o que quer que fosse imediatamente, mas quanto mais Bruno o observava, mais certo ficava de que uma catástrofe estava prestes a acontecer. Ele parecia menor a cada semana que passava, se é que isso era possível, e a cor que deveria estar corando suas faces havia se esgotado quase por completo. Os olhos pareciam pesados de lágrimas, e Bruno pensou que uma piscadela mais demorada poderia desencadear uma verdadeira torrente delas.
Quando Pavel trouxe os pratos, Bruno não pôde deixar de reparar que as suas mãos estavam ligeiramente trêmulas sob o peso deles. E, quando o servente se afastou para reassumir sua posição habitual, pareceu oscilar sobre os dois pés e teve que apertar uma mão contra a parede para se endireitar. A mãe teve que pedir duas vezes por mais uma colherada de sopa antes que ele a ouvisse, e ele deixou a garrafa de vinho ficar vazia antes de abrir outra a tempo de encher o copo do pai.
“Herr Liszt não nos deixa ler poesias durante a aula, nem peças de teatro”, queixou-se Bruno durante o prato principal. Como havia convidados para o jantar, a família estava vestida formalmente – o pai de uniforme, a mãe num vestido verde que lhe destacava os olhos, e Gretel e Bruno com as roupas que costumavam vestir para ir à igreja quando moravam em Berlim. “Eu perguntei se poderíamos lê-las só um dia por semana, mas ele disse que não, não enquanto ele for o encarregado da nossa educação.”
“Tenho certeza de que ele tem seus motivos”, disse o pai, atacando uma perna do cordeiro.
“Tudo o que ele quer é que estudemos história e geografia”, disse Bruno. “E eu estou começando a odiar história e geografia.”
“Por favor, Bruno, não diga que odeia”, disse a mãe.
“Por que você odeia história?”, perguntou o pai, deixando o garfo de lado e olhando através da mesa para o filho, que deu de ombros, um dos seus maus hábitos.
“Porque é chata”, disse ele.
“Chata?”, disse o pai. “Um filho meu chamando de chato o estudo da história? Vou lhe contar uma coisa, Bruno”, continuou ele, inclinado-se pra a frente e apontando a faca para o menino, “foi a história que nos trouxe até aqui hoje. Se não fosse pela história nenhum de nós estaria sentados à nossa mesa da nossa casa em Berlim. Estamos corrigindo a história aqui.”
“Mesmo assim é chata”, repetiu Bruno, que não estava prestando atenção realmente.
“Terá de desculpar meu irmão, tenente Kotler”, disse Gretel, depositando uma mão sobre o braço dele por um instante, o que fez a mãe encará-la e estreitar os olhos. “Ele é um menininho muito ignorante.”
“Eu não sou ignorante”, retrucou Bruno, que já estava farto dos insultos dela. “Terá de desculpar minha irmã, tenente Kotler”, acrescentou ele educadamente, “mas ela é um Caso Perdido. Há muito pouco que possamos fazer por ela. Os médicos dizem que ela está além de qualquer ajuda.”
“Cale a boca”, disse Gretel, corando inteira.
“Cale a boca você”, disse Bruno, sorrindo de orelha a orelha.
“Crianças, por favor”, pediu a mãe.
O pai bateu a faca levemente contra a mesa repetidas vezes e todos ficaram em silêncio. Bruno olhou na direção dele. Não parecia exatamente bravo, mas sua expressão indicava que ele não ia tolerar mais discussões.
“Eu gostava muito de história quando era menino”, disse o tenente Kotler após alguns instantes silenciosos. “E, embora meu pai fosse professor de literatura na universidade, eu sempre preferi as ciências sociais às artes.”
“Não sabia disso, Kurt”, disse a mãe, voltando-se para olhá-lo por um momento. “Ele ainda é professor?”
“Acho que sim”, disse o tenente Kotler. “Na verdade, não sei.”
“Mas como pode não saber?”, perguntou ela, contraindo o rosto. “Você não mantém contato com ele?”
O jovem tenente meteu na boca um grande bocado de cordeiro, o que lhe deu uma oportunidade para pensar em uma resposta. Ele olhou para Bruno como se desejasse que o menino jamais tivesse tocado no assunto.
“Kurt”, repetiu a mãe, “você não mantém contato com seu pai?”
“Na verdade, não”, ele respondeu, dando de ombros, como se dispensasse o assunto, e nem sequer voltou a cabeça para encará-la. “Ele deixou a Alemanha há alguns anos. Acho que foi em 1938. Desde então não o vi mais.”
O pai parou de comer por um instante e olhou para o tenente Kotler do outro lado da mesa, franzindo levemente o cenho. “E para onde ele foi?”, perguntou.
“Perdão, herr comandante, pode repetir, por favor?”, perguntou o tenente Kotler, apesar de o pai ter falado numa voz perfeitamente clara.
“Perguntei aonde ele foi”, repetiu ele. “Seu pai. O professor de literatura. Para onde ele foi quando deixou a Alemanha?”
O rosto do tenente Kotler enrubesceu levemente e ele gaguejou um pouco ao responder. “Creio que... Acho que está na Suíça agora”, disse afinal. “A última notícia que tive é de que ele estava lecionando numa universidade em Berna.”
“Ah, mas a Suíça é um lindo país”, disse rapidamente a mãe. “Nunca estive lá, admito, mas pelo que ouço contar...”
“Ele não deve ser muito velho, o seu pai”, disse o pai, silenciando a todos com sua voz grave. “Quero dizer, você tem apenas... quanto? Dezessete? Dezoito anos de idade?”
“Acabei de completar dezenove, herr comandante.”
“Então seu pai teria... pouco mais de quarenta anos, imagino?”
O tenente Kotler não disse nada e continuou comendo, embora não parecesse estar saboreando a comida.
“Estranho que ele tenha decidido deixar a pátria”, disse o pai.
“Não somos próximos, meu pai e eu”, disse o tenente Kotler rapidamente, olhando ao redor para todos na mesa, como se devesse a eles alguma explicação. “É verdade, não nos falamos há anos.”
“Se me permite perguntar, qual motivo ele teria alegado”, prosseguiu o pai, “para abandonar a Alemanha no seu momento de maior glória e de necessidade mais vital, quando é dever de todos nós cumprir nosso papel na renovação do país? Ele sofria de tuberculose, por acaso?”
O tenente Kotler encarou o pai, confuso. “Perdão, comandante?”, perguntou ele.
“Ele foi para a Suíça por causa do clima?”, insistiu o pai. “Ou será que havia outro motivo particular para que ele abandonasse a Alemanha? Em 1938”, acrescentou ele, após um instante.
“Infelizmente eu não sei, herr comandante”, disse o tenente Kotler. “Teria de perguntar a ele.”
“Bem, seria algo bem difícil de fazer, não é? Quero dizer, com ele estando tão longe. Mas talvez fosse isso. Talvez ele estivesse doente.” O pai hesitou um pouco antes de pegar a faca e o garfo novamente e continuar a comer. “Ou quem sabe ele tivesse... divergências.”
“Divergências, herr comandante?”
“Quanto à política do governo. Ouvimos histórias de gente assim de tempos em tempos. Sujeitos curiosos, imagino eu. Alguns, perturbados da cabeça. Outros, traidores. Covardes também. Certamente você informou os seus superiores a respeito das opiniões de seu pai, não, tenente Kotler?”
O jovem tenente abriu a boca e então engoliu, apesar de não estar comendo nada.
“Esqueça”, disse o pai, animado. “Talvez este não seja um tema apropriado para a mesa do jantar. Podemos discuti-lo com maior profundidade no futuro.”
“Herr comandante”, disse o tenente Kotler, inclinando-se ansiosamente para a frente, “posso garantir que...”
“Não é um assunto apropriado para a mesa do jantar”, repetiu o pai, ríspido, calando-o imediatamente, e Bruno correu os olhos de um para o outro, ao mesmo tempo impressionado e assustado com a atmosfera criada.
“Eu adoraria ir à Suíça”, disse Gretel após um longo silêncio.
“Coma seu jantar, Gretel”, disse a mãe.
“Mas eu só estava dizendo que...!”
“Coma seu jantar”, repetiu a mãe, que estava prestes a falar mais quando foi interrompida pelo pai chamando Pavel outra vez.
“Qual é o seu problema hoje à noite?”, perguntou ele, enquanto Pavel abria outra garrafa. “É a quarta vez que preciso pedir por mais vinho.”
Bruno observou-o, torcendo para que ele estivesse se sentindo bem, embora tivesse conseguido sacar a rolha sem nenhum acidente. Mas, depois de encher o copo do pai, ele voltou-se para encher o do tenente Kotler, e então acabou deixando a garrafa escapar das mãos e cair no chão, espatifando-se e derramando todo o conteúdo diretamente sobre o colo do jovem.
O que aconteceu então foi ao mesmo tempo inesperado e extremamente desagradável. O tenente Kotler ficou muito bravo com Pavel e ninguém – nem Bruno, nem Gretel, nem a mãe, nem mesmo o pai – interveio para impedi-lo de fazer o que fez a seguir, muito embora nenhum deles tivesse sido capaz de olhar. Muito embora aquilo tenha feito Bruno chorar e Gretel empalidecer.
Mais tarde naquela noite, quando foi para a cama, Bruno pensou a respeito de tudo o que tinha acontecido durante o jantar. Lembrou-se de como Pavel fora gentil com ele na tarde em que fizera o balanço, e como havia estancado o sangramento no joelho e tinha sido muito cuidadoso ao aplicar o ungüento verde. E apesar de Bruno entender que o pai era em geral um homem gentil e cheio de consideração, parecia injusto e errado que ninguém tivesse impedido o tenente Kotler de ficar tão bravo com Pavel, e se esse era o tipo de coisa que acontecia em Haja-Vista, então era melhor ele não discordar de ninguém acerca de coisa alguma; na verdade seria bom ficar de boca fechada e não criar encrenca nenhuma. Era capaz de alguém não gostar.
A antiga vida em Berlim parecia agora uma lembrança distante, e ele nem mesmo conseguia se lembrar de como eram Karl, Daniel e Martin, a não ser pelo fato de que um deles era ruivo.

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