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quinta-feira, 14 de março de 2013

O menino do pijama listrado- Capítulo 16 - O corte de cabelo

Já fazia quase um ano desde o dia em que Bruno chegara em casa e encontrara Maria empacotando suas coisas, e as suas memórias da vida em Berlim haviam se desvanecidos quase completamente. Quando tentava se lembrar, sabia que Karl e Martin eram dois de seus três melhores amigos, mas não conseguia mais se lembrar do nome do terceiro. E então aconteceu uma coisa que fez com que ele passasse dois dias longe de Haja-Vista e retornasse à casa antiga: a avó tinha morrido e a família fez a viagem de volta para o funeral.
Enquanto esteve lá, Bruno se deu conta de que não era mais tão pequeno, pois agora conseguia ver por cima das coisas de um modo que não conseguia antes e, quando pernoitaram na antiga casa, ele pôde olhar através da janela, no último andar, e ver Berlim sem ter que ficar na ponta dos pés.
Bruno não vira mais a avó desde que deixaram Berlim, mas pensava nela quase todos os dias. As coisas de que mais se lembrava eram os esquetes que ela, ele e Gretel encenavam durante o Natal e os aniversários, e como ela sempre tinha o figurino certo para qualquer papel que se fosse representar. Quando pensava que eles nunca mais poderiam fazer aquilo de novo, Bruno ficara realmente muito triste.
Os dois dias que passaram em Berlim também foram muito tristes. Houve o funeral, e Bruno e Gretel e o pai e a mãe e o avô sentaram-se na primeira fila, o pai vestindo seu mais importante uniforme, aquele engomado e passado cheio de condecorações. O pai estava especialmente triste, a mãe contou a Bruno, porque havia brigado com a avó e eles não fizeram as pazes antes de ela morrer.
Muitas coroas funerárias foram entregues na igreja, e o pai ficou muito orgulhoso em saber que uma delas fora mandada pelo próprio Fúria; no entanto, quando a mãe ficou sabendo, disse que a avó se reviraria no túmulo se soubesse daquilo.
Bruno ficou quase feliz de voltar a Haja-Vista. A casa ali já se tornara o seu lar e ele havia parado de se preocupar se ela tinha cinco andares ou apenas três, e não se importava tanto com os soldados indo e vindo como se fossem os donos do lugar. Ele lentamente se deu conta de que as coisas não eram tão más assim por ali, principalmente depois de ter conhecido Shmuel. Bruno sabia que havia muitas coisas com as quais se alegrar, como, por exemplo, o fato de que o pai e a mãe pareciam mais felizes, e a mãe não precisava de tantas sonecas pela tarde nem de tantos tragos do xerez medicinal. E Gretel estava passando por uma nova fase – nas palavras da mãe – e sua tendência era ficar fora do caminho dele.
Havia também o fato de o tenente Kotler ter sido transferido para longe de Haja-Vista, portanto ele não estava mais por perto para atormentar Bruno e irritá-lo o tempo todo. (A sua partida ocorrera subitamente e causara grande gritaria entre a mãe e o pai durante a noite, mas ele se foi, disso não havia dúvida, e não ia voltar mais; Gretel ficou inconsolável.) Este era outro motivo de felicidade: ninguém mais o chamava de “homenzinho”.
Mas o melhor de tudo é que ele tinha um amigo chamado Shmuel.
Ele adorava caminhar ao longo da cerca todas as tardes e ficou satisfeito em ver que o amigo parecia muito mais feliz ultimamente, e os seus olhos não estavam mais tão fundos, embora o corpo ainda fosse ridículo de tão magro, e o rosto de uma desagradável tonalidade cinza.
Certo dia, enquanto estavam sentados no lugar de sempre, um de frente para o outro, Bruno comentou: “Esta é a amizade mais estranha que já tive.”
“Por quê?”, perguntou Shmuel.
“Porque com todos os outros meninos com os quais eu fiz amizade eu podia brincar”, respondeu ele. “E nós nunca podemos brincar juntos. Tudo o que podemos fazer é ficar aqui sentados conversando.”
“Eu gosto de ficar aqui sentado conversando”, disse Shmuel.
“Bom, eu também gosto, é claro”, disse Bruno. “Mas é uma pena que não possamos fazer algo mais divertido de vez em quando. Talvez explorar um pouco. Ou jogar futebol. Nunca sequer nos vimos sem esta cerca de arame no caminho.”
Bruno freqüentemente fazia comentários desse tipo porque preferia fingir que o incidente de alguns meses antes, quando ele negou ser amigo de Shmuel, jamais tivesse acontecido. Aquilo ainda o assombrava e o fazia sentir-se mal a respeito de si mesmo, embora Shmuel, para seu crédito, parecesse ter esquecido de tudo completamente.
“Quem sabe um dia nós possamos”, disse Shmuel. “Se é que vão nos deixar sair.”
Bruno começou a pensar mais e mais sobre os dois lados da cerca e o motivo de sua existência. Ele pensou em perguntar à mãe e ao pai a respeito dela, mas suspeitava que eles ou ficariam bravos por mencioná-la ou lhe diriam algo desagradável sobre Shmuel e sua família, e então ele decidiu fazer algo bastante incomum. Decidiu conversar com o Caso Perdido.
O quarto de Gretel havia mudado consideravelmente desde a última vez em que ele estivera lá. Não havia uma única boneca à vista. Certa tarde, mais ou menos um mês antes, perto da época em que o tenente Kotler se foi de Haja-Vista, Gretel decidira que não gostava mais de bonecas e as colocou todas dentro de quatro grandes sacolas e as jogou fora. Em seu lugar havia pendurado mapas da Europa que o pai lhe dera, e todo dia ela espetava pequenos pinos sobre eles, os quais se movia constantemente depois de consultar o jornal do dia. Bruno pensou que talvez a irmã estivesse enlouquecendo. Ainda assim, ela não o provocava nem incomodava tanto quanto antes, o que o fez pensar que talvez não fosse má idéia conversar com ela.
“Olá”, disse ele, batendo educadamente na porta, pois sabia como ela ficava brava quando ele simplesmente ia entrando.
“O que você quer?”, perguntou Gretel, que estava sentada à cômoda, experimentando novos penteados.
“Nada”, disse Bruno.
“Então vá embora.”
Bruno balançou a cabeça, mas entrou do mesmo jeito e sentou-se na lateral da cama. Gretel observou-o com o canto dos olhos, mas não disse nada.
“Gretel”, disse ele afinal, “posso perguntar uma coisa?”
“Se for rápido, pode”, disse ela.
“Tudo aqui em Haja-Vista”, começou ele, mas ela o interrompeu imediatamente.
“Não é Haja-Vista, Bruno”, disse Gretel com raiva, como se fosse o pior erro jamais cometido na história da humanidade. “Por que você não consegue pronunciar direito?”
“O nome é Haja-Vista”, protestou ele.
“Não é”, disse ela, pronunciando corretamente o nome do campo para ele.
Bruno franziu o semblante e deu de ombros ao mesmo tempo. “Pois foi o que eu disse”, disse ele.
“Não foi, não. Seja como for, não vou discutir com você”, disse Gretel, já perdendo a paciência, coisa que ela nunca teve muita. “O que é, afinal? O que quer saber?”
“Quero saber sobre a cerca”, disse ele com firmeza, decidindo que essa era a coisa mais importante para começo de conversa. “Quero saber por que está lá.”
Gretel voltou-se na cadeira e olhou-o com curiosidade. “Quer dizer que não sabe?”, perguntou ela.
“Não”, disse Bruno. “Não entendo por que não podemos ir ao outro lado. O que há de errado conosco a ponto de não podermos ir até o outro lado da cerca e brincar?”
Gretel encarou-o e então começou a rir, parando apenas quando percebeu que Bruno estava falando absolutamente sério.
“Bruno”, disse ela numa voz infantil, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo, “a cerca não está lá para nos impedir de ir ao outro lado. É para impedi-los de virem até aqui.”
Bruno avaliou a resposta, entretanto ela não melhorou seu entendimento. “Mas por quê?”, perguntou ele.
“Porque eles têm que ser mantidos juntos”, explicou Gretel.
“Com suas famílias, você quer dizer?”
“Bem, sim, com suas famílias. Mas principalmente com a sua própria laia.”
“Como assim, sua própria laia?”
Gretel suspirou e balançou a cabeça. “Com os outros judeus, Bruno. Não sabia disso? É por isso que precisam ficar juntos. Eles não podem se misturar com a gente.”
“Judeus”, disse Bruno, testando a nova palavra. Ele bem que gostou do som. “Judeus”, repetiu ele. “Aquelas pessoas todas do outro lado da cerca... são judeus.”
“Sim, é isso mesmo”, disse Gretel.
“E nós, somos judeus?”
Gretel abriu a boca espantada, como se tivesse recebido um tapa no rosto. “Não, Bruno”, disse ela. “Nós absolutamente não somos judeus. E você não devia sequer dizer uma coisa dessas.”
“Mas por que não? O que nós somos, então?”
“Nós somos...”, começou Gretel, mas então teve que, parar e pensar a respeito. “Somos...”, repetiu, ainda sem saber qual era a resposta para essa pergunta. “Bem, não somos judeus”, disse ela afinal.
“Já sei que não somos”, disse Bruno, frustrado. “Estou perguntando: já que não somos judeus, o que nós somos então?”
“Somos o contrário”, disse Gretel, respondendo rapidamente e parecendo mais satisfeita com esta resposta. “Sim, é isso. Nós somos o contrário.”
“Certo”, disse Bruno, feliz porque finalmente esclareceu o problema. “E o contrário mora deste lado da cerca, e os judeus, daquele lado.”
“É isso mesmo, Bruno.”
“Os judeus não gostam do contrário, então?”
“Não, estúpido, somos nós que não gostamos deles.”
Bruno enrugou a testa. Gretel já fora repreendida incontáveis vezes por chamar o irmão de estúpido, e mesmo assim insistia.
“Então, por que não gostamos deles?”, perguntou ele.
“Porque são judeus”, disse Gretel.
“Entendi. E o contrário e os judeus não se dão bem.”
“Não, Bruno”, disse Gretel, mas disse-o lentamente porque acabara de descobrir algo esquisito no cabelo e estava examinando aquilo com toda atenção.
“Bem, será que não dá para alguém chamá-los para conversar e...”
Bruno foi interrompido pelo som de Gretel soltando um grito agudo, que acordou a mãe de sua soneca vespertina e a trouxe correndo até o quarto querendo descobrir qual de seus filhos assassinara o outro.
Enquanto experimentava diferentes penteados, Gretel encontrou um minúsculo ovo, do tamanho da cabeça de um alfinete. Ela o mostrou para a mãe, que vasculhou o cabelo dela, separando rapidamente algumas mechas, antes de marchar até Bruno e fazer o mesmo com ele.
“Oh, eu não posso acreditar”, disse ela, brava. “Eu sabia que aconteceria uma coisa dessas num lugar como este.”
Ela descobriu que tanto Gretel como Bruno tinham piolhos nos cabelos. A menina precisou de um tratamento com um xampu especial que tinha cheiro muito ruim e depois ficou horas em seu quarto, chorando e chorando.
Bruno também precisou do xampu, mas então o pai decidiu que seria melhor para ele começar do zero e pegou uma navalha e raspou todo o cabelo do menino, o que o fez chorar. Não demorou muito, e ele detestou ver o cabelo flutuando da cabeça e aterrissando no chão aos seus pés, mas o pai disse que aquilo tinha de ser feito.
Mais tarde Bruno foi olhar no espelho do banheiro e se sentiu mal. Sua cabeça toda parecia deformada agora que estava careca, e os olhos davam a impressão de ser grandes demais para o rosto. Ele quase teve medo do próprio reflexo.
“Não se preocupe”, encorajou o pai. “Vai crescer de novo. Basta esperar algumas semanas.”
“Foi toda essa sujeira daqui que provocou isto”, disse a mãe. “Se certas pessoas ao menos percebessem o efeito que este lugar está tendo sobre todos nós.”
Quando se viu no espelho, Bruno não pôde evitar de pensar em como estava parecido com Shmuel, e ele se perguntou se as pessoas do outro lado da cerca teriam piolhos também e se era por isso que todas tinham as cabeças raspadas.
Ao ver o amigo no dia seguinte, Shmuel começou a rir da aparência de Bruno, o que não ajudou muito a restaurar-lhe a autoconfiança abalada.
“Agora fiquei parecido com você”, disse Bruno, triste, como se aquela fosse uma coisa terrível de se admitir.
“Só que mais gordo”, acrescentou Shmuel.

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