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quinta-feira, 14 de março de 2013

O menino do pijama listrado- Capítulo 4 - O que eles viram atravéz da janela

Para começar, não eram crianças, afinal. Ao menos, não todos. Havia meninos pequenos e grandes, pais e avôs. Talvez alguns tios também. E algumas daquelas pessoas que vivem sozinhas nas ruas da vida e não parecem ter parentes. Era gente de todo o tipo.
“Quem são eles?”, perguntou Gretel, tão boquiaberta quanto o irmão costumava ficar. “Que tipo de lugar é esse?”
“Não sei bem ao certo”, disse Bruno, mantendo-se o mais fiel possível a verdade. “Só sei que não é tão gostoso quanto a nossa casa.”
“E aonde estão as meninas? E as mães? E as avós?”
“Talvez elas morem em outra parte”, sugeriu Bruno.
Gretel concordou. Ela não queria continuar olhando, mas era muito difícil voltar os olhos para outra direção. Até então, tudo o que vira fora a floresta diante de sua própria janela, que parecia um pouco escura, mas um bom lugar para piqueniques, se houvesse uma clareira mais adiante. Mas, daquele lado da casa, a vista era bem diferente.
Começava até agradável. Havia um jardim logo abaixo da janela de Bruno. E era bem grande, repleto de flores crescendo em seções bastante ordenadas, que aparentavam ser cuidadas com muito zelo por alguém que sabia que plantar flores num lugar como aquele era uma boa coisa a se fazer, como acender uma pequena vela no canto de um enorme castelo numa charneca enevoada durante uma noite escura de inverno.
Para além das flores havia um pátio bastante aprazível com um banco de madeira, onde Gretel se imaginou sentada à luz do sol lendo um livro. Havia uma placa instalada na parte superior do banco, mas ela não conseguiu lê-la àquela distância. O banco estava voltado para a casa – o que seria habitualmente estranho, mas, naquelas circunstâncias, ela compreendeu o motivo.
A uns cinco metros mais adiante no jardim e das flores e do banco com a placa, tudo ficava diferente. Havia uma enorme cerca de arame que envolvia toda a casa e se voltava para dentro no topo, estendendo-se em todas as direções para onde a vista de Gretel não alcançava. A cerca era muito alta, ainda maior do que a casa na qual estavam, e havia imensos mourões de madeira, como postes telegráficos, distribuídos ao longo dela, mantendo-a de pé. Sobre a cerca havia grandes rolos de arame farpado entrelaçados em espirais, e Gretel sentiu uma pontada inesperada de dor dentro de si ao olhar para as pontas afiadas que sobressaíam ao longo de toda a extensão.
Não havia grama do outro lado da cerca; na verdade não havia verde nenhum. Em vez disso, o chão parecia feito de uma substância arenosa, e até onde sua vista alcançava tudo o que havia eram cabanas baixas e prédios quadrados e amplos espalhados pelos arredores, e uma ou duas colunas de fumaça ao longe. Ela abriu a boca para dizer alguma coisa, mas então percebeu que não encontrava as palavras para expressar sua surpresa e fez a única coisa que podia fazer, fechando-a novamente.
“Está vendo?’, disse Bruno do canto do quarto, sentindo-se silenciosamente satisfeito consigo mesmo porque o que quer que houvesse lá fora – e fossem eles quem fossem – fora ele quem primeiro os descobrira e poderia vê-los sempre que quisesse, pois estavam do lado de fora da janela do seu quarto, e não do dela, e portanto pertenciam a ele, e ele era o rei de tudo o que eles viam, e ela era sua súdita inferior.
“Não entendo”, disse Gretel. “Quem seria capaz de construir um lugar tão assustador?”
“É mesmo assustador, não é?”, concordou Bruno. “Acho que aquelas cabanas têm apenas um andar. Veja como são baixas.”
“Devem ser casas de tipo moderno”, disse Gretel. “Papai odeia as coisas modernas.”
“Então acho que ele não vai gostar delas”, disse Bruno.
“Não”, respondeu Gretel. Ela ficou parada um bom tempo olhando para elas. Com doze anos, era considerada uma das meninas mais inteligentes da classe, então apertou os lábios e estreitou os olhos e forçou o cérebro a entender o que ela estava vendo. Ao final, só conseguiu pensar em uma explicação.
“Aqui deve ser o interior”, disse Gretel, voltando-se triunfante para encarar o irmão.
“O interior?”
“Sim, é a única explicação, não está vendo? Quando estamos em casa, em Berlim, estamos na cidade. É por isso que há tanta gente e tantas casas, e as escolas são cheias, e não dá para chegar ao centro da cidade no sábado à tarde sem ser empurrado de poste em poste.”
“Sim...”, disse Bruno, acenando com a cabeça, tentando acompanhar o raciocínio.
“Mas aprendemos na aula de geografia que no interior, onde ficam os fazendeiros e os animais, e onde a comida é produzida, há grandes áreas como esta, onde as pessoas moram e trabalham e de onde mandam toda a comida para nos alimentar.” Ela olhou pela janela novamente, para a grande imensidão diante dela e para a distância que havia entre cada uma das cabanas. “Deve ser aqui. É o interior. Talvez aqui seja nossa casa de férias”, acrescentou, esperançosa.
Bruno pensou a respeito e balançou a cabeça. “Acho que não”, disse ele com grande convicção.
“Você tem nove anos” retrucou Gretel. “Como poderia saber? Quando tiver a minha idade, você entenderá essas coisas muito melhor.”
“Pode ser que sim”, disse Bruno, que sabia que era mais jovem, mas não concordava que isso diminuísse suas chances de acertar o palpite, “só que, se aqui é o interior, como você diz, onde estão todos os animais de que você falou?”
Gretel abriu a boca para responder, mas não conseguiu pensar numa resposta adequada e então optou, em vez disso, por olhar uma vez mais pela janela e procurar pelos bichos, porém eles não estavam em parte alguma.
“Deveria haver vacas e porcos e ovelhas e cavalos”, disse Bruno. “Quero dizer, se fosse uma fazenda. Para não falar nos patos e galinhas.”
“E não há bichos aqui”, admitiu Gretel em voz baixa.
“E se eles cultivassem alguma comida aqui, como você sugeriu”, prosseguiu Bruno, divertindo-se muito, “então acho que o solo teria de ter um aspecto bem melhor do que esse, não acha? Nessa sujeira não deve dar para plantar nada.”
Gretel olhou novamente e acenou com a cabeça, pois não era tola a ponto de insistir que estava certa o tempo todo, quando estava claro que os argumentos se voltavam contra ela.
“Talvez não seja uma fazenda, então”, ela disse.
“Não é”, concordou Bruno.
“O que quer dizer que aqui talvez não seja o interior”, ela prosseguiu.
“Não, acho que não é”, ele respondeu.
Ele se sentou na cama e por um instante desejou que Gretel se sentasse ao seu lado e pusesse o braço ao seu redor e dissesse que tudo ficaria bem e que mais cedo ou mais tarde os dois aprenderiam a gostar de lá e jamais quereriam voltar a Berlim. Mas ela ainda estava olhando pela janela e desta vez não observava as flores nem o pátio nem o banco com a placa ou a cerca alta ou os postes de maneira nem os rolos de arame farpado ou o chão estéril para além deles nem as cabanas ou os pequenos prédios ou mesmo as colunas de fumaça; em vez disso, ela estava olhando para as pessoas.
“Quem são todas aquelas pessoas?”, ela perguntou em voz baixa, como se não estivesse conversando com Bruno, mas pedindo uma resposta de outra pessoa. “E o que elas estão fazendo lá?”
Bruno se levantou, e pela primeira vez eles ficaram juntos,observando, ombro a ombro, aquilo que acontecia a menos de cento e cinqüenta metros da própria casa.
Por toda parte que olhavam, viam pessoas altas e baixas, velhas e jovens, todas perambulando. Algumas ficavam imóveis em grupos, as mãos ao lado do corpo, tentando manter a cabeça erguida, enquanto um soldado marchava diante delas, abrindo e fechando a boca com rapidez como se estivesse gritando alguma coisa. Algumas formavam uma espécie de corrente, empurrando carrinhos de mão de um lado da instalação até o outro, surgindo de um lugar além do alcance da vista e levando os carrinhos mais adiante até chegarem atrás de uma cabana, onde desapareciam novamente. Algumas permaneciam perto das cabanas em grupos silenciosos, sempre olhando para o chão, como naquele tipo de brincadeira cujo o objetivo é não ser visto. Outras usavam muletas e muitas tinham ataduras em torno da cabeça. Algumas carregavam pás e eram levadas por grupos de soldados até um lugar onde não podiam mais ser vistas.
Bruno e Gretel podiam ver centenas de pessoas, mas havia ali tantas cabanas, e o campo ia tão mais longe que eles não conseguiam ver, que parecia haver milhares de pessoas lá.
“E todos morando tão perto de nós”, disse Gretel, franzindo o cenho. “Em Berlim, na nossa rua calma e agradável havia apenas seis casas. E agora são tantas. Por que o papai aceitaria um emprego aqui, num lugar tão feio e tão cheio de vizinhos? Não faz sentido.”
“Olhe ali”, disse Bruno, e Gretel seguiu com os olhos a direção que ele apontava, e viu emergir de uma cabana na distância um grupo de crianças, todas juntas, acompanhadas por soldados que gritavam com elas. Quanto mais eles gritavam, mais juntos os pequenos ficavam, mas então um dos soldados se lançou na direção do grupo e elas se separaram e fizeram o que ele parecia exigir desde o início, que era formar uma fila única. Quando assim fizeram, os soldados começaram a gargalhar e as aplaudiram.
“Deve ser algum tipo de ensaio”, sugeriu Gretel, ignorando o fato de que algumas crianças, mesmo as mais velhas, mesmo aquelas que pareciam ter a idade dela, davam a impressão de estar chorando.
“Eu falei que havia crianças aqui”, disse Bruno.
“Não são o tipo de criança com quem eu gostaria de brincar”, disse Gretel com a voz determinada. “Elas parecem imundas. Hilda e Isobel e Louise tomam banho toda a manhã e eu também. Aquelas crianças parecem nunca ter tomado banho em suas vidas.”
“Lá parece mesmo bem sujo”, disse Bruno. “Mas e se elas não tiverem banheiro?”
“Não seja burro”, disse Gretel, apesar de já ter ouvido incontáveis vezes que não deveria chamar o irmão de burro. “Que tipo de gente não tem banheiro?”
“Não sei”, disse Bruno. “Gente que não tem água quente?”
Gretel observou-os mais alguns momentos antes de ter um calafrio e se afastar. “Vou para o meu quarto arrumar minhas bonecas”, disse ela. “A vista de lá é bem mais bonita.”
Com esse comentário, ela se foi, voltando pelo corredor até o quarto e fechando a porta atrás de si, mas demorou um pouco antes de retomar a arrumação. Sentou-se na cama e muitas coisas passaram pela sua cabeça.
E um pensamento final passou pela cabeça de seu irmão, enquanto ele observava as centenas de pessoas na distância prosseguindo com seus assuntos, e era o fato de que todos eles – os meninos pequenos, os meninos grandes, os pais, os avôs, os tios, as pessoas que vivem sozinhas nas ruas da vida e não parecem ter parentes – usavam as mesas roupas: um conjunto de pijama cinza listrado com um boné cinza listrado na cabeça.
“Que coisa incrível”, ele murmurou, antes de se voltar para o outro lado.

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